30 junho 2010

Um domingo qualquer

Não andavam muito bem. As discussões eram frequentes e a mágoa transbordava entre os dias. Reflexo da estafa no trabalho de ambos, pensavam. E assim desculpavam a si e ao outro.

A vida os mudara. Estavam juntos há longos 9 anos, os dois últimos mais longos que os sete primeiros.

Começaram a namorar ainda na época do segundo grau, cursado em colégio de freiras que não permitiam mãos dadas no recreio nem abraços enquanto vestissem o uniforme, ainda que fora das dependências da escola.

Fizeram faculdade em cidades diferentes, gastando as economias dos estágios e “bicos” em xérox de livros e passagens de ônibus, mas se viam pelo menos uma vez por mês. Haviam jurado fidelidade no calor da aprovação no vestibular e mantiveram a promessa. Ou assim me contam, e me dou por satisfeito com a palavra de um e de outro.

Formaram-se quase no mesmo dia. Ele no dia 22 de setembro, ela no dia 24. Havia um equinócio entre as graduações, era primavera e tudo eram flores. Voltaram à cidade natal e mataram a saudade. Não desgrudaram uma hora sequer nos 47 dias que se seguiram, mas no 48º dia discutiram.

Uma besteira, uma bobagem, um trocinho insignificante... Ele convergiu à esquerda sem acionar a sinaleira, ou ela jogou o papel do chocolate no chão, ou algo do mesmo tipo, categoria e tamanho. Motivo ridículo, ambos admitem. Após 7 anos se conhecendo, se estranharam.

Nos dias seguintes, foram se redescobrindo. Na verdade, descobrindo o quanto cada um havia mudado nos 5 anos de faculdade, quantos defeitos novos haviam surgido e quantas qualidades haviam ficado pelo caminho.

Meses se passaram e o carinho não era o mesmo. O beijo quase escondido na época de colégio e ansiado na época de faculdade agora era quase temido. Porque você pode fingir as palavras, mas é muito difícil mentir um beijo. (Tem quem seja profissional nas duas coisas e em todas as demais formas de mentira, mas não era o caso deles).

Ambos se magoavam com a frieza que se instalara e que os dois fingiam não sentir. Havia a esperança (vã) de voltarem ao que era, como se fosse possível reverter o tempo, anular a distância e recompor cristais uma vez quebrados. Havia ainda a autopiedade que os impedia de jogar fora os 7 belos anos (e, assim, jogavam fora não só os sete que já haviam ido pro brejo como os dias que se passavam e se transformavam em nove).

E principalmente havia a teimosia e o orgulho que impede a pessoa de admitir que errou, de jogar o projeto no lixo e começar em uma nova folha em branco, ainda que o prazo esteja acabando (o que não é o caso, pois nos assuntos sentimentais só é tarde pra recomeçar se a pessoa acreditar que é).

Adivinhando subconscientemente todos os dias um fim que nunca vinha, ela o escondia de seus colegas de trabalho, pois não queria “ser queimada na firma”, seja lá o que quer que isso signifique. Poucos sabiam que ela tinha namorado e quase todos poderiam passar por ele na porta do edifício sem saber de quem se tratava. Pra sem mais exato, dos 28 funcionários da firma, só dois sabiam que ele era namorado dela. Contando com ela!

Por três vezes ele foi buscá-la, querendo fazer surpresa e ela mentiu, afirmando que não estava mais na firma, que havia saído mais cedo e ido de ônibus (dor de cabeça, consulta médica e prova na especialização foram as desculpas) para não ter que abraçá-lo na recepção da empresa. Ou pior, para não ter que recusá-lo na recepção da empresa.

Num domingo qualquer, ele foi entregar uma maquete para uma nova cliente. Domingo? Ela estranhou sem motivo. Ele era assim, meio workaholic quando se empolgava com uma encomenda. Na verdade, se empolgara tanto que era pra entregar no sábado, mas quis dar os retoques finais com perfeccionismo e ligou pra cliente perguntando se poderia entregar no dia seguinte.

No domingo, ela foi junto com ele. Ao chegar na casa, ele estacionou o carro e ela avisou “espero aqui”. Ele não insistiu, pois sabia que a cliente não estava em casa, que entregaria a maquete para a empregada, caso contrário teria insistido para que ela descesse, pois sabia (no íntimo sabia) o que era ser “ocultado” da vida profissional da pessoa amada.

(Sim, eles ainda se amavam, embora fosse mais pelo que um dia foram do que pelo que eram naquele momento)

Ele entrou, colocou a maquete com cuidado em cima da mesa de jantar, agradeceu a empregada e saiu. Ela, enciumada, imaginou mil coisas nos pouco mais de meio minuto que ele estivera longe dos seus olhos, mas nunca perguntou o que aconteceu dentro da casa, embora quisesse muito saber.

E ele nunca disse, embora soubesse que ela queria saber mais do que tudo no mundo.

09 junho 2010

Um dia qualquer

No mesmo dia em que colocou o retrato do cônjuge na parede, este pediu o divórcio.

A vida não é irônica?