14 setembro 2008

Valorizamos mais o registro que o fato

Dizem - não sei se os livros de histórias verdadeiras ou os roteiros fantasiosos de cinema - que há uma tribo de índios nos EUA que acredita que a foto de alguém lhe rouba a alma.

Uma vez, quando criança, pedi pra tirar as fotos em uma festa, em casa. Seduzido pela máquina e pela técnica, achava que seria divertido. E foi muito! Por dez ou quinze minutos... Depois me entediei com aquilo, com a necessidade de buscar as pessoas, os melhores ângulos e tudo o mais. Era como se a foto estragasse a diversão. Era como se a foto roubasse a alma da festa.

Alguns anos depois, um amigo resolveu filmar sua festa. Ao entrar com a filmadora na sala, imediatamente todos paravam de dançar ou conversar. Uns se escondiam, outros ensaiavam poses, caras e bocas. A sedução da idéia de ser diretor de cinema do meu amigo esbarrava na ausência de atores pro seu filme: uns não desejavam ser nem ao menos figurantes ao passo em que outros queriam logo um Oscar. Meu amigo jamais ganhou algum prêmio filmando suas festas. Tudo o que ele conseguia ao entrar no ambiente com a filmadora era tirar a espontaneidade da festa. A filmagem roubava a alma.

Lembrei de tudo isso hoje, vendo a despedida de uma jogadora de vôlei da seleção brasileira, a “Fofão”. Assim que o jogo acabou, suas companheiras de equipe jogaram-na pra cima, gritando o seu nome e em seguida a abraçaram. Tudo muito bonito, genuíno, espontâneo... Mas ela passou próxima a um repórter que imediatamente colocou o microfone na sua frente e disparou a pergunta:

_ E agora?

Como assim “e agora?”??? Agora sei lá eu e nem ela. Ninguém sabe! Pode ser que ela vá dar aulas em escolinha, pode virar comentarista esportiva, pode posar pra uma revista masculina, pode cair em depressão... Pode tanta coisa mas você quer essa resposta agora?

É um tanto inoportuna a presença do repórter ali. A jogadora coça a cabeça como se buscasse o que responder. Ele quer uma resposta, o que implica que preciso dizer algo. E ele a quer agora... Mas tinha que ser agora mesmo? Tivesse inspiração na hora, talvez ela tivesse respondido ao “e agora?” da seguinte forma:

_ Agora eu vou voltar pra lá e festejar com eles, curtindo o carinho da torcida. Amanhã eu dou uma coletiva e te digo o que vou fazer.

Ela foi simpática e ensaiou uma resposta. Eu confesso que não ouvi. Já estava viajando no tempo, relembrando minha infância com suas Olympus e JVCs.

A câmera daquele repórter roubou a alma do momento. A jogadora, coitada, após coçar a cabeça e pensar em algo chegando à conclusão de que o que o “e agora?” reserva é uma grande incerteza, voltou pra perto das companheiras de equipe. Perdera um minuto e meio de comemoração e 80% da empolgação. Antes se sentia a mulher mais poderosa do mundo e agora voltou a ser só uma fulana que não sabe se terá emprego.

Mas me apeguei demais à pergunta. A interrupção por si só já faz o estrago. Veja os aniversários, as formaturas e os casamentos: quanto tempo é gasto tirando fotos e filmando!

O que era pra ser uma comemoração se transforma em uma via crucis de tira foto com um e com outro, vai de mesa em mesa tirando foto e filmando, agora uma com os pais, agora perto daquela coluna com vaso pra fazer a capa e a abertura do vídeo. Já fui em um casamento no qual os fotógrafos e cinegrafistas cercavam o casal, o padre e o altar, impedindo a visão da cena pelos que estavam presentes.

Muitos homens importantes tiveram somente cinco ou seis fotos na vida. Hoje tenho isso em uma única noite! No entanto não precisamos de foto alguma pra lembrar o primeiro beijo (seria muito improvável que alguém tivesse tirado uma foto naquela hora). Tiramos fotos de tudo e filmamos tudo na ânsia de eternizar o momento, sem nos aperceber de quantos momentos perdemos pra fotografar ou filmar e - o pior - de quanta espontaneidade a presença dessas máquinas nos rouba.

Temos que lembrar que o registro não eterniza o momento. Este será eterno ou não pelos seus próprios méritos. É preciso parar de ser um paparazzi de si mesmo.

3 comentários:

Milford Maia disse...

Com toda a certeza, minha cara Alesya,

Essa sede por eternizar o momento acaba-se por perdê-lo.

São tantas câmaras digitais, tantos telefones celulares. E de que vale tudo isso, se no final das contas, só restam imagens pálidas e tremidas, vagas lembranças de sorrisos amarelos e da perda da naturalidade do momento.

Forte abraço! Visite o blog aqui ou acolá!

Anônimo disse...

adorei o texto. vc é um ótimo escritor hein. sou sua admiradora

Trebor Basques disse...

Antes, mas não muito antes, da geração da fotografia digital, era possível se valorizar a foto, vc tinha uma câmera e um filme de 12 poses. A escolha de cada foto era importante. Hoje se tem uma câmera e um cartão de 2 giga, o que possibilita 2000 fotos, diz o dono orgulhoso. Mas 2000 fotos que ninguém vai ver, ficarão dentro de uma pasta, minhas figuras, em um cd para a eternidade. Talvez alguém monte um fotolog ou coloque no orkut, o que na minha opnião, continuarão não sendo vistas. Belo texto. Um efusivo abraço