30 julho 2010

Uma nova mulher

“Felizmente não era alzheimer” - diziam os amigos e ele concordava, maneando a cabeça de maneira afirmativa, mas no seu íntimo quase desejava que fosse. Talvez assim ele sofresse menos.

O que o incomodava era não reconhecer mais a própria esposa. Não era um caso de reconhecimento facial, uma amnésia, mal de alzheimer... Era algo que não tinha nome, nem explicação racional.

Tudo começou quando ela deixara de comparecer ao tradicional almoço de Páscoa na casa dos pais dele. Dias depois, ligou dizendo que chegaria mais tarde porque tinha que refazer um relatório gerencial pois o total não tinha fechado, coisa e tal. E deixou de atender alguns telefonemas dele no horário de expediente.

Claro que passou pela cabeça o medo da traição. Tentou assistir TV, mas seus olhos fixos no eletrodoméstico mostravam sua ausência. Pensou em mil possibilidades mas não fazia sentido ser traído: eram felizes em todos os sentidos, tinham uma boa situação financeira (que lhes permitia viajar de tempos em tempos), estavam sexualmente satisfeitos, mantinham a paixão acesa... E, se nada disso bastasse, eram religiosos e - pelo menos a princípio - respeitavam o mandamento de não trair.

Algum tempo passou e as coisas pareciam voltar ao normal. Um dia ele notou que ela tinha um novo aparelho celular, na verdade um smartphone. Logo ela, que não era fã de coisas hi-tech e cujos celulares tinham parcos recursos e raramente iam além do FM, MP3 e joguinho.

O pior de tudo nem foi o celular novo (isso ele até achou bom), mas o fato de ter comprado e não ter contado, compartilhado. Fingiu não notar no primeiro dia, mas terminou perguntando:

_ Celular novo?

_ É. O outro estava começando a dar problema.

_ Comprou quando?

_ Faz uns dias...

A resposta imprecisa o deixou pior do que antes. Antes achava que ela não queria contar sobre o celular, agora tinha certeza disso! A coisa piorou mais ainda quando ele descobriu que ela tinha Twitter. Não era nada escondido, já que usava o próprio nome e sobrenome. E não escrevia nada.

Mas pra que ter Twitter e não usar? Ele tinha e nunca fizera segredo disso, tinha dado o endereço a ela. Ou não? Provavelmente tinha. Certamente! E ela tinha um Twitter e não escrevia nada???!!! Só se fosse pra trocar DMs, as mensagens privativas...

Pensou em olhar cada seguidor dela e cada pessoa que ela seguia, buscando algum que parecesse suspeito. Não daria trabalho, não chegavam nem a cinquenta pessoas... Mas desistiu. Não queria desconfiar da esposa.

Algumas semanas depois quis deixar um recado no Orkut da esposa e não encontrou. Ela apagou o perfil? Procurou e terminou encontrando a página dela, sem foto e com o nome “Fechada para balanço”! E sem os depoimentos dele... Pelo menos ela deixara o estado civil inalterado. Mas o que estava acontecendo com a sua esposa?

Passou semanas tentando descobrir, sentindo cada palavra e observando cada movimento. Pensou em fazer uma planilha medindo quantos abraços, beijos e “eu te amo” ouvia, mas achou isso muito alienista, muito machadiano. E, sobretudo, muito doentio.

Continuavam aparentemente felizes em todos os sentidos, a situação financeira até melhorara, estavam planejando uma viagem a Los Angeles, continuavam satisfeitos sexualmente e a paixão continuava acesa... E ainda iam à Igreja toda semana e comungavam, o que significava - pelo menos a princípio - que ela ainda era fiel.

Certo dia não aguentou mais, perguntou a ela o que estava acontecendo. Ela disse que nada estava acontecendo, ele citou as mudanças e estranhezas. Ela disse que era bobagem, que o amava muito, que ele deixasse de caraminholas, que era sua e de mais ninguém, que pensava nele as 24 horas do dia, que falava nele pra todo mundo, que no celular... Ops! Smartphone dela só tinha fotos dele, só tinha mensagens dele e tudo o mais...

Depois começou a chorar, dizer que ele podia perguntar para a mãe dela ou ligar pra colega de trabalho, que elas iam confirmar que ela era apaixonada por ele, que não tinha olhos para mais ninguém, que o amor dele era mais do que suficiente para a felicidade completa dela.

E era verdade tudo isso o que ela dissera. Mas ela havia mudado e isso o incomodava cada dia mais. Ele tinha certeza de que não havia mudado, os amigos diziam isso e até mesmo ela confirmava que ele era o mesmo homem que um dia a pedira em namoro.

Não havia casado com ela, não com essa mulher. Algum extraterrestre a havia abduzido e tomado seu lugar. Ele não reconhecia mais a esposa (infelizmente não era alzheimer, ele pensava), não era a mulher com quem se casara, disso tinha certeza.

A mulher que ele tomou no altar era atenciosa, carinhosa e caseira. A que estava morando com ele nunca percebia se ele estava triste ou só cansado, não assistia mais TV de mãos dadas e vivia no shopping com amigas. Até no sexo mudara: agora ela, após o êxtase, virava de lado, dando as costas pra ele e dormia.

Era uma nova mulher.

E a cada dia que passava ele ficava mais determinado a abandonar essa estranha e sair pela porta à procura da mulher que conhecia, com quem namorou e casou.

4 comentários:

Milford Maia disse...

Descomunal diferença entre namorar e morar!

A que subiu ao altar lá ficou, num pedestal, intocável e imaculada. Será a imagem perfeita e inesquecível, idealizada e distante.

Já a que desceu deste mesmo altar, tendo a ilusão de dever cumprido do matrimônio a todo o custo (provavelmente para agradar aos costumes da sociedade), experimenta um enorme e desnecessário vazio n'alma.

A primeira talvez jamais tenha existido. A segunda, desistiu de ser, ao aceitar meramente existir.

Forte abraço!

Mariana_Ash disse...

"Só com o tempo percebemos que é preciso mudar-se muito para continuar sempre o mesmo"
Autor desconhecido

Anônimo disse...

Só podemos fazer e sermos felizes quando damos ao outro total e irrestrito direito de pensar , de fazer; escolher ir e voltar, sem questionamentos, sem perguntas. Se o outro está feliz então também estamos, mesmo que não estejamos participando do momento do outro.O homem só será feliz quando entender
"Que o importante não é estar feliz e sim fazer feliz.Bom Final de Ano à
todos.

MIrex1101 disse...

E a mulher, submissa exemo de virtde machista, um dia percebeu que eh muito melhor, muito maior que as definições impstas ela sociedade e pelo marido que pensa que ser "esposa" basta! Nãaaaaaao, ser Mulher eh ser muito mais que isto tudo....